Mais um dia de trabalho. Enquanto a esposa se prepara para sair, ele acorda os filhos que precisam tomar café e colocar o uniforme da escola. Ela, vestindo sua roupa em alta velocidade, coloca-se a pensar na dura jornada de trabalho que está por vir, clientes para quem deve ligar, problemas que deve resolver. Ele, coando o café, pensa na lista de compras e determina o que será servido no almoço, e jantar. Enquanto ela se despede das crianças, ele certifica-se que o lanche do recreio está postado adequadamente junto ao suco na lancheira dos filhos. Ela sai com o carro e acena desejando um bom dia ao marido, ele, já do lado de fora da casa, poe-se a caminhar aqueles mesmos quarteirões diários até a escola das crianças. Já de volta a casa, prepara-se para mais um dia de trabalho, veste seu avental, coloca suas luvas de borracha, e está pronto para exercer sua função, dono-de-casa.
Histórias como essa estão sendo cada vez mais presentes na vida de muitos homens ao redor do mundo, e esta realidade, que antes parecia ser tema de piada, já pode ser tratada de forma séria. A presença de homens desempenhando o papel de dono-de-casa atualmente, segundo a professora doutora Maria Juracy Toneli, que teve sua tese de doutorado dedicada ao estudo de homens donos-de-casa, deve-se a vários aspectos, entre eles, certamente, as mudanças que o movimento feminista conquistou. “A entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho (ainda que com toda a desigualdade visibilizada pelas estatísticas como os salários desiguais), o desemprego, as mudanças na socialização dos meninos, a ênfase na importância da educação das crianças, enfim, são vários elementos que podem ser levados em conta nesse cenário” comenta Juracy, hoje, professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
No Brasil, de acordo com estatísticas da Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mulheres no mercado de trabalho vem crescendo gradativamente enquanto o número de homens desempregados também aumenta. Nos cursos superiores elas também estão em ascensão, em 13 anos, o número de mulheres matriculadas em instituições de ensino superior cresceu 22% em relação ao número de matrículas feitas por homens. O aumento do sexo feminino foi de 181%, contra 148% de estudantes do sexo masculino, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Cerca de 56% das matrículas nos cursos de graduação pertencem a mulheres.
Juracy ressalta que só o fato de as mulheres estarem em maior número no mercado de trabalho não explica o fato de os homens estarem cuidando da casa. “A mudança de valores ou mesmo a manutenção de alguns valores como o da importância do cuidado para com os filhos pode ser um elemento importante. Outra questão fundamental é a concepção de masculinidade que está em jogo. Se para ser homem é necessário diferenciar-se das mulheres, então torna-se mais difícil para um homem desempenhar as tarefas domésticas e de cuidados, tradicionalmente atribuídas às mulheres. É mais fácil, por exemplo, homens cuidarem da casa quando não há mulheres disponíveis para isso”, diz ela.
Faço porque gosto
Há vários fatores que impulsionam o homem atual a se tornar um dono-de-casa, mas também há aqueles que o fazem por opção. FD, 44, que prefere não ser identificado, mantém um blog onde relata suas experiências e dá dicas a outros homens que pretendem um dia se dedicar à vida de dono-de-casa. “Eu queria dar a outros homens, que vivem como eu, uma visão da minha vida, para que assim eles percebam que não estão sozinhos”. FD vive na Virginia, Estados Unidos, com sua esposa, com quem é casado há 18 anos, e suas duas filhas. Há 15 anos FD desempenha o papel de dono-de-casa, “Eu amo ser um dono-de-casa, é muito compensador e muito melhor do que trabalhar fora. Eu sei o que devo fazer e faço”.
A esposa de FD é uma advogada de sucesso que garante a renda da casa, o que possibilita FD de realizar todas as tarefas domésticas e ainda dividir seu tempo na educação das filhas de 14 e 12 anos e em trabalhos voluntários em uma organização sem fins lucrativos. O cotidiano de FD é bem parecido ao de uma dona-de-casa, e se orgulha ao dizer que nunca teve uma empregada. “No último sábado, eu acordei cedo, esvaziei o limpa-louças, peguei o jornal e fiz café para minha esposa. Preparei panquecas para minhas filhas e depois lavei a louça. Levei minha filha ao cabeleireiro e então antecipei algumas tarefas da semana: limpei os banheiros, varri o chão, aspirei os tapetes, tirei a poeira dos móveis e limpei a cozinha. Levei minha outra filha ao jogo de basquete e logo que cheguei em casa minha esposa havia voltado das compras. À noite, ela nos levou para jantar num ótimo restaurante italiano e quando voltamos passei as roupas enquanto ela assistia TV com as crianças. Quando terminei, fomos dormir, após eu lhe dar uma bela massagem nos pés”.
Unidos pela causa
Pois é, o mundo está mudando, e apesar de parecer que casos como este são fatos isolados, uma associação da Itália comprova que não. Após operar em anonimato durante 10 anos, em 2003, na aprazível região montanhosa da província de Lucca, na Itália, foi fundada a Associação dos Homens Donos-de-Casa (Associazione Degli Uomini Casalinghi), que hoje já conta com mais de 4 mil sócios espalhados por toda Europa e América. Conforme explica o presidente Fiorenzo Bresciani, a associação nasceu com o objetivo de reunir homens de todo o mundo que se dedicam em tempo integral ou parcial à atividades domésticas. Na associação eles trocam experiências, como melhores produtos para limpeza e receitas culinárias. “Iniciamos a associação entre três amigos e atualmente temos 4.386 sócios. Como podemos ver, a associação cresceu muito e em pouco tempo, isso demonstra que o homem agora esta pronto para mudar seu modo de viver” afirma Bresciani.
E para quem não acredita nos números do presidente da associação dos donos-de-casa, se preparem, pois será muito difícil de acreditar nos próximos. Em pesquisa realizada pelo Departamento Nacional de Estatísticas Britânico (Office for National Statistics), o número de homens que agora desempenham o papel de donos-de-casa, na Grã-Bretanha, aumentou em três mil para um total de 200 mil no primeiro trimestre de 2007, comparado com o mesmo período do ano passado. O mesmo valor, mas de queda, foi registrado entre as mulheres – o número de donas-de-casa caiu em três mil para 2,115 milhões nos primeiros três meses de 2007. Outra pesquisa da Grã-Bretanha, esta feita pela revista “Pregnancy and Birth”, que pesquisou duas mil mulheres grávidas e seus parceiros, revelou que um terço dos futuros pais querem ser donos-de-casa e cuidar dos filhos. De acordo com o estudo, outros 30% dos pesquisados gostariam de trocar o trabalho em tempo integral por um de tempo parcial, se a situação financeira permitir.
Dono-de-casa forçado
Mas o trabalho que é tão almejado nos dados das pesquisas, é um tormento na vida de alguns homens, como, por exemplo, na do português de Porto, Cláudio Nuno, 26, que mantém um blog chamado “Vida de um dono-de-casa forçado”. Nuno vive com sua namorada há alguns meses e como seu trabalho de professor não ocupa muito de seu tempo, e sem muito dinheiro para contratar uma empregada doméstica, ele se viu na obrigação de assumir os afazeres da casa, já que sua esposa trabalha em período integral. O português revela que já tinha conhecimento de algumas tarefas, pois as realizava quando morava com seus pais. Mas a responsabilidade por todos os cuidados da casa vem lhe rendendo muitas boas histórias, publicadas em seu blog, criado em fevereiro de 2007. Com mais de mil visitas, já criou leitores assíduos que comentam em quase todos os posts do autor. Mesmo gostando da popularidade, Nuno assume que preferiria não estar nessa situação. “Não gosto das tarefas domésticas, mas têm que ser feitas, não é?”, indaga ele.
Eles estão na mídia
Profissão que orgulha a uns e não anima a outros, a função de dono-de-casa é uma das que tem grande chance de receber novos adeptos com o passar dos anos. Os efeitos disso já podem ser percebidos em alguns movimentos sociais e produções artísticas. Uma das músicas que impulsionou a carreira do grupo de axé Babado Novo e que permaneceu por algum tempo nas paradas de sucesso popular no Brasil abordava o tema. Através do refrão “Cachorro, safado, sem-vergonha. Eu dou duro o dia inteiro e você colchão e fronha”, é perceptível que os compositores trataram de relatar, em tom irônico, uma suposta superioridade da mulher nos dias de hoje.
Outro produto artístico que aborda a questão dos donos-de-casa é o livro reportagem do americano Ad Hudler, intitulado “Househusband” (Dono-de-Casa), que conta a história de um homem que tem de abandonar o trabalho e se dedicar aos cuidados da casa quando a mulher recebe uma bela proposta de trabalho. O livro já foi traduzido em quatro línguas e recebeu ótimas críticas da imprensa americana.
E a temática não foge das telinhas de Hollywood. Um dos mais famosos atores de comédia dos Estados Unidos, Jim Carrey, já está gravando seu novo filme onde atuará como um escritor, que ao ver sua mulher grávida novamente, e necessitando de repouso absoluto, assume a função de cuidar da casa e dos filhos.
Na Internet, o assunto também é muito comentado. No site de relacionamentos “Orkut” há várias comunidades criadas e com muitos adeptos ao tema, porém grande parte delas leva o fato de ser dono-de-casa como uma brincadeira. Na comunidade “Quero ser dono-de-casa” a descrição revela o tom de ironia com o tema “Nós queremos sim ser sustentados por nossas mulheres que um dia queimaram o sutiã e saíram para trabalhar”. Mas não são apenas os homens que brincam com o tema, as mulheres também criam comunidades a respeito, como a “Quero um dono-de-casa” que traz em sua descrição um desabafo da injustiça com as mulheres. “Esta comunidade é para quem pensa que não tem problema nenhum em ter um namorado ou marido que ajude a cuidar de casa e dos filhos. Já era o tempo que só a mulher educava, esquentava a barriga no fogão e esfriava no tanque”, diz a descrição.
Donos-de-casa empreendedores
Com esse tom de comédia que em meados de 2004, quatro amigos, ao se verem desempregados e tendo de assumir as tarefas domésticas, resolveram criar camisetas com desenhos e frases que identificavam a situação por qual passavam. As tais camisetas ficaram famosas e muitos outros adeptos surgiram querendo também uma peça de roupa que retratasse o tema. Foi daí que os quatro tiveram a idéia de criar uma marca de roupa dedicada à situação, a “Dono-de-casa House Wear”. “No início possuíamos apenas camisetas com estampas simples, mas com o tempo passamos a nos profissionalizar, diversificar produtos, e, além disso, decidimos criar sempre novas estampas e dar mais atenção ao design gráfico de nosso site, cartazes e filipetas”, conta Alex Franulovic, um dos idealizadores da marca.
Franulovic e seus amigos-sócios logo perceberam que a marca dos donos-de-casa não se restringia apenas a eles. “A princípio, nosso público alvo eram os homens que estavam em situação idêntica à nossa, ou seja, cuidando do lar enquanto suas mulheres saíam para o trabalho, mas percebemos que as mulheres também se identificavam muito com isso, ou seja, queriam que seus homens ‘folgados’ assumissem uma postura de dono-de-casa”, revela Franulovic.
Preconceito, por pouco tempo
Apesar de a profissão estar se propagando, as dificuldades de ser um dono-de-casa vão além do trabalho de limpar, lavar, cozinhar e cuidar dos filhos. O preconceito e as chacotas de homens e mulheres para com os homens que assumem essa profissão ainda são normais. “Há muito preconceito contra homens dono-de-casa, alguns homens e mulheres que conheço me vêem como um preguiçoso”, afirma o dono-de-casa americano, FD. Para a doutora no assunto, Juracy, dependendo da situação existe ainda o preconceito. “No caso de homens solteiros, de camadas médias urbanas, penso que esse comportamento já está mais incorporado socialmente, especialmente porque eventualmente contam com o auxílio de mulheres como faxineiras diaristas. No caso das camadas populares, em se tratando de organizações familiares que não contam com mulheres aptas para essas tarefas (por sua ausência ou por sua idade, por exemplo) também me parece mais fácil a aceitação. Já com o dono-de-casa Maurício (meu informante principal durante o doutorado), ele mesmo relatava as situações nas quais foi alvo de chacota por parte de vizinhos”, fala a doutora.
Para o presidente da Associação dos Donos-de-Casa, Fiorenzo Bresciani, “Ainda há preconceito, mas tentamos fazer as pessoas entenderem o quanto é importante colaborar com o seu papel nos cuidados da casa e da própria vida. O homem que cuida da sua própria casa deve ser sempre bem visto e respeitado. O homem do terceiro milênio deve ser inteligente e preparado para saber cuidar de sua casa”.
Para Franulovic, empresário que aposta nos donos-de-casa, vai haver um dia que eles serão tão normais quanto as donas-de-casa. “Já encontramos com mais facilidade homens que assumem as tarefas domésticas, pois eles perceberam que devem mudar para não se transformarem em personagens fora do seu tempo. Também vemos que muitos homens naturalmente estão tomando gosto de estar perto dos filhos e ter mais oportunidades de ficar em casa com a família”, argumenta Franulovic.
Se algum dia os donos-de-casa serão melhores que as donas-de-casa, Bresciani responde que não há como dizer quem é melhor, “O correto é dizermos que o homem, por escolher assumir esse papel, o desempenha melhor. Enquanto muitas vezes recai sobre as mulheres essa tarefa, o que resulta num trabalho inferior, pois elas o realizam com muito pesar”.
O bom argumento do presidente da associação dos donos-de-casa não é compartilhado pelo dono-de-casa FD, que discorda. “As mulheres desempenham esse papel melhor. Assim como em todas as outras atividades, elas são superiores aos homens. A sociedade está percebendo isso agora, e é por isso que elas estão cada vez mais no mercado de trabalho, e homens como eu, cuidando de casa”.
Sem pedir licença, quebrando valores que por muito tempo imperavam na cultura mundial e igualando ainda mais os homens e as mulheres, a função de dono-de-casa já é um fato que precisa receber um outro olhar da sociedade. Opinião, compartilhada por todos os entrevistados, é a de que os homens do futuro precisam estar aptos a essa mudança, tanto em considerá-la, como em aceitá-la, pois quem não o fizer poderá a qualquer momento ser engolido pela onda, sem ao menos estar preparado. Neste futuro, de grandes mudanças em vários conceitos que antes eram tão sólidos, qualquer homem poderá ser o próximo dono-de-casa, cabe a cada um aceitar e se preparar, ou, se surpreender.